A 6 de Maio de 1980, estava eu em Lisboa, na sede do Sindicato da Marinha Mercante Aeronavegação e Pescas com um grupo de sindicalistas da aviação a discutir a formação do que viria a ser o SITAVA (Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos).
Tinha de ir para o Aeroporto apanhar o avião da noite para Faro, a discussão ia longa e já nada profícua, disse ao Férin-meu amigo, Controlador aéreo no Aeroporto de Faro: “vamo-nos embora ou perdemos o avião”, tendo o Férin continuado na reunião eu desci para a rua a fim de apanhar um táxi.
Quando o táxi ia arrancar apareceu o Férin que seguiu comigo para o Aeroporto
Sentámo-nos no avião, ele junto à janela e eu ao seu lado. Continuámos a trocar ideias sobre a formação do SITAVA.
Ao meu lado, na coxia, sentou-se um jovem com ar imberbe, posteriormente soube que tinha 16 anos.
Notei que o jovem estava nervoso e pensei que eventualmente seria a primeira vez que voava. O jovem perguntou-me onde ficava a casa de banho, e disse que não se sentia muito bem-disposto pois comera havia pouco tempo. Disse-lhe que teria que esperar que dessem autorização para desapertar o cinto após a descolagem e que havia duas casas de banho, uma nas traseiras e outra na frente do avião. Abri-lhe o ar condicionado e indiquei-lhe o saco de enjoo. O jovem agradeceu e logo que pôde sair do assento foi à casa de banho.
Nós continuávamos na discussão sindical e nem nos apercebemos que o jovem não havia regressado ao lugar. Quando olhei para baixo vi as luzes da pista do aeroporto de Faro e comentei “estamos a chegar”. Continuamos a conversar e passados cerca de 10 a 15 minutos, olhei pela janela e verificando que estávamos em altitude de cruzeiro disse “passa-se qualquer coisa estranha, se calhar fomos desviados”. Era uma dedução lógica, não havia mau tempo em Faro e se tivéssemos de ter voltado para trás por alguma razão técnica o comandante teria avisado os passageiros.
Quando a Chefe de Cabine, que eu conhecia, passou junto de nós eu chamei-a e perguntei-lhe discretamente o que se estava a passar e ela sussurrou que estava alguém no “cockpit”. Comentei: “Se calhar é o miúdo que estava aqui ao meu lado que estava com ar nervoso, saiu daqui para ir à casa de banho e não mais voltou”.
A Chefe de Cabine olhou para debaixo do assento, viu um saco e levou-o para a “galley”, voltando algum tempo depois para dizer que tinha encontrado um B.I. no saco e que de facto era o miúdo que estava no cockpit.
Entretanto no Aeroporto de Faro os familiares e amigos dos passageiros, sem informações, conjeturavam se o avião não havia sido desviado pelas Brigadas Vermelhas.
Continuámos a voar, sem qualquer informação só depois de aterrarmos fomos informados que estávamos em Barajas, aeroporto de Madrid, na zona militar.
O Rui Rodrigues, assim se chamava o miúdo, disse que tinha sido ele que tinha desviado o avião e que não queria fazer mal aos passageiros.
O único momento em que senti medo foi quando olhando pela janela, estava muito escuro na zona militar, distingui os GOE espanhóis de metralhadora na mão a ocuparem posições à volta do avião. Pensei que se entrassem no avião o resultado não seria bom. Felizmente que não lhes foi permitido entrar no avião.
Ficámos também a saber que decorriam negociações com o Embaixador de Portugal em Madrid.
Alguns passageiros à nossa volta começaram a ficar nervosos e eu decidi começar a contar algumas anedotas para descomprimir. Resultou, porque a certa altura a Chefe de Cabine veio ao pé de nós e disse-nos para não rirmos tão alto podia o sequestrador desconfiar…
Passado algum tempo o Rui Rodrigues informou que os passageiros com crianças podiam abandonar o avião. Foi uma revoada de gente, parecia um bando de pardais a sair sem qualquer controlo (o que não teria acontecido se tivesse sido um qualquer terrorista a desviar o avião) . Até mesmo um passageiro que viajava com a mulher, agarrou numa de duas crianças de um casal e saiu com ela deixando a sua mulher a bordo.
Outro passageiro que havia comprado um novo par de sapatos em Lisboa e os tinha na bagageira, foi buscar os sapatos e calçou-os dizendo que não morria sem estrear os sapatos!
Passado algum tempo o Rui Rodrigues informou que os passageiros idosos podiam sair do avião. Uma senhora Sueca bastante idosa, com um turbante na cabeça e que se encontrava perto de nós ficou a bordo. Um dos passageiros perguntou-lhe em Inglês se não tinha percebido a informação. Ela disse que tinha entendido, mas que com a idade que tinha já não iria passar por outra experiência como esta e queria vive-la até ao fim.
Já havia muito poucos passageiros a bordo e então um passageiro que era cônsul da Suécia em Portimão ofereceu-se para ficar sozinho como refém. Assim foi, nós saímos e ele acabou por também sair 5 ou 10 minutos depois.
Fomos recebidos no aeroporto por um representante do Governo, Eng.º João Cravinho. E fomos transportados para o Hotel Barajas onde nos esperava comida, bebida e telefone para comunicar com os familiares. Pernoitámos no Hotel.
No dia seguinte um avião veio buscar-nos a Madrid. Fui entrevistado, a bordo, para a RTP pelo jornalista Pedro Oliveira, uma vez que o Rui Rodrigues havia estado sentado ao meu lado e havíamos dialogado. Lembro-me que uma das perguntas que me foram feitas foi sobre qual a minha opinião acerca do sequestro e de ter respondido que “com 16 anos podem fazer-se coisas muito estúpidas em desespero de causa porque nessa idade não se vislumbram muitas saídas para alguns problemas”. Recordei-me de dois jovens com essa idade que se enforcaram porque os pais dele e dela não aceitavam que namorassem.
Soube posteriormente que o que motivou o Rui a roubar uma pistola ao pai e desviar o avião exigindo 50.00 contos para fugir para a Suíça, tinha a ver com um caso familiar extraconjugal com que o Rui não conseguiu lidar.
Felizmente o Comandante do avião, Coutinho Ramos, evitou que o Rui Rodrigues fosse preso em Espanha e conjuntamente com a tripulação do avião deu todo o apoio ao Rui Rodrigues tendo inclusivamente testemunho abonatoriamente no Tribunal. Rui Rodrigues foi condenado, mas com pena suspensa, evitando-se que este seu erro o mantivesse encerrado numa escola de crime.
Passados uns anos, o Rui era Produtor de Televisão.
Vítor Azevedo