Contos de Viagem

Não há estranhos, apenas amigos que ainda não conhecemos – Cabo Verde

There are no strangers here, only friends you haven’t yet met“, William Yeats

Quando marcámos a viagem a Cabo Verde, tínhamos acabado de chegar do Sri Lanka. A sensação com que voltamos de lá, foi de que, além dos bonés e t-shirts de Portugal que levámos para oferecer, poderíamos ter feito muito mais. E melhor. Gostar de visitar lugares menos turísticos, leva-nos a conhecer as populações, as suas rotinas e, por vezes, as suas dificuldades. Com Ilha do Sal no “cesto de compras”, poderíamos arranjar forma de ajudar quem realmente precisa, de uma forma justa e com respeito pela cultura.

Ouvimos histórias de jipes que passam em Terra Boa (Iha do Sal), atiram pelo ar as coisas/comida, como se dentro das cabanas estivessem crocodilos, em vez de crianças. Como se parar o carro, e falar com alguém, os fizesse apanhar uma doença incurável. Não, por favor não.

Terra Boa – Ilha do Sal

Uma busca na internet e passando os olhos nas redes sociais, descobrimos a CODE (Cooperativa de Desenvolvimento de Cabo Verde), com um projeto chamado Know Cape Verde, que nos chamou a atenção. Enviámos uma mensagem, com a nossa ideia que era muito simples: Queremos ajudar. O que precisam? Nós levamos! E quando a resposta, nos chega em minutos, percebemos que é um sinal para correr bem.

Começamos a recolha de materiais escolares e roupa de rapaz. Não estávamos à espera que tantas pessoas ajudassem. Foram 40kgs de material escolar, roupas, sapatos e mais alguns produtos.

Combinámos o dia para ir lá deixar a “encomenda”, sem protocolos, nem grande organização.

Dentro do Mercado Municipal de Santa Maria, no 1ºandar, está a funcionar a CODE. A fundadora e diretora de projeto, é a Hélia Bernardo, portuguesa, de Salvaterra de Magos, socióloga, ex-funcionária da Comissão Europeia na Holanda, e um ser humano de qualidades extraordinárias. Apaixonou-se por Cabo Verde numas férias, fez as malas, idealizou um sonho e colocou as mãos à obra, sozinha.

O projeto, era totalmente financiado pelos seus três trabalhos: como professora de Inglês, Alemão, Francês e Holandês, aulas que dá aos funcionários dos hotéis e na escola de Hotelaria e Turismo de Cabo Verde. Organizadora das festas no Bikini Beach Club. Hoje tem apoio do governo e de organizações estrangeiras, e continua à procura de investidores.

A CODE é muito mais do que uma cooperativa com um projeto social. Através do website Know Cape Verde, pretendem fazer chegar informações, a todas as pessoas que queiram visitar a ilha do Sal de forma mais autêntica, através de turismo sustentável apoiando os pequenos negócios locais, oferecendo experiências que os turistas não encontram nos resorts.

O seu projeto, chamado RECICLARTE, visa educar as crianças no sentido de lhes dar competências, e conhecimentos, que possam melhorar as suas vidas futuras. As atividades, além da reciclagem de materiais, incluem apoio escolar, jogos, brincadeiras, colo, lanche, e muitos momentos divertidos.

Nós sentimos a energia deste grupo. As crianças estão descontraídas e sorridentes. A CODE é um oásis nos seus dias, que começam muitas vezes quando o sol nasce e têm de carregar bidões de água às costas, antes de ir para a escola.

As aulas nas escolas, são só de manhã ou de tarde, e a ideia é que ocupem os seus tempos livres com uma atividade útil, em vez de vaguearem pelas ruas ao acaso. Levarem um lanche a forrar o estômago, e palavras amigas a consolar as suas (muitas) ansiedades.

A Hélia não está sozinha neste momento. Além destes 31 filhos adotados, chegaram reforços.

O seu pai, Amílcar, ex-professor de Educação Visual e Tecnológica, encontrou aqui um lugar onde pode fazer aquilo que mais tem vocação: ensinar crianças a fazer trabalhos manuais, colocar as mãos na “massa”, e deixar de lado a parte burocrática. Com paciência de avô, transmite os seus conhecimentos, coloca os miúdos todos a “trabalhar”, e passa o confortável sentimento familiar, a todos os que o rodeiam.

Com o pai, veio a mãe: Hortense. Modista de profissão, nunca se imaginou a fazer roupas de criança, para além dos seus filhos. Jamais pensava em visitar África, quanto mais viver lá. O coração falou mais alto, um neto a caminho fê-la repensar a sua vida, e num devaneio de coragem deixou a sua casa, e abraçou também ela o projeto CODE. Além disso, tem uma pequena loja, a Art & Craft, no centro de Santa Maria onde faz arranjos de costura, e roupas de criança para vender aos turistas.

Contou-nos com lágrimas nos olhos, que teve o melhor Natal da sua vida, quando acolheram em casa um grupo de crianças cujos pais tinham viajado na época festiva, e tinham deixado os miúdos ao “cuidado” de vizinhos/tios. “Eles ficaram tão contentes com sandes mistas e banho de chuveiro com água quente”.

Recentemente, chegou mais um elemento da família: Miguel, irmão de Hélia. A trabalhar na área de multimédia, com um coração impregnado dos mesmos genes solidários dos pais e irmã. Está há um mês na Ilha do Sal, e diz que dali não sai tão cedo. O trabalho é muito gratificante.

Ficámos muito felizes por conhecer esta família. Mais ainda, por conhecer Ilha do Sal de verdade, e não só o azul turquesa do mar e paisagens de catálogo turístico. Somos do género de ficar de conversa com as pessoas, e num lugar como este, em que há tempo para tudo, é de aproveitar para voltar de coração cheio, conhecimento sobre a cultura, aprender algumas palavras em crioulo e saborear os pratos típicos.

Fomos tão bem acolhidos, que podemos dizer que temos a certeza que já eramos amigos, mas ainda não tínhamos descoberto! Ilha do Sal ficou no nosso coração, vamos ficar em contacto e certamente vamos lá voltar, e fazer chegar mais solidariedade até aos “meninos CODE”.

A Ilha do Sal deixou-nos muita saudade no regresso. É um lugar para ir de mente aberta e alma de viajante. É um lugar que pode ser difícil aos olhos de quem nunca viu pobreza, casas inacabadas de chão de terra, e meninos descalços com roupas gastas.

A Ilha do sal é como as imagens que vemos da superfície de Marte, com restos do que foi a industria do sal há 150 anos. Mas o verde fresco que o nosso olhar procura todos os minutos, encontramos nos sorrisos das crianças, nos cumprimentos do povo e nos cheiros familiares para nós, portugueses.

Viajar é fazer amigos e regressar com coração cheio de bons sentimentos, em vez de passaportes cheios de carimbos. Nós, e os mini-viajantes crescemos na mesma medida das experiências que vivenciamos. O mundo é uma excelente sala de aula! Dar, e aceitar, ajuda da parte de desconhecidos mostra-nos a compaixão e esperança em vários momentos das nossas viagens, e destrói completamente a ideia de que outra cultura possa ser assustadora ou diferente, quando comparada com a nossa.

Afinal, os estranhos são apenas amigos que ainda não conhecemos.

Bons Passeios!

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3 Comments

  1. Amei ler este testemunho, pois sinto e penso da mesma forma. Obrigada. Sempre que possível escreva sobre as suas viagens. Isaura Filipe

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